14.4.05

 

Na morte de João Paulo II

Com o desaparecimento de João Paulo II, assistimos a mais um grande acontecimento mediático, daqueles que fazem o gáudio das cadeias de televisão de todo o mundo.

Muito se disse já sobre o Papa que veio do Leste, mas há um aspecto que, não obstante a intensa cobertura mediática dos últimos dias, tem passado pouco sublinhado e que é o relativo à sua categoria intelectual e correspondente produção, nas diversas formas de intervenção que experimentou : encíclicas, cartas pastorais, exortações, mensagens apostólicas e outros documentos doutrinários e catequéticos.

A primeira encíclica de João Paulo II que li, de maneira exaustiva e meditada, foi a Centesimus Annus, publicada em 1991, ano da sua segunda visita a Portugal.

Na altura, ela comemorava também o centenário da publicação da Rerum Novarum / Das Coisas Novas, do Papa Leão XIII, a primeira tentativa, por parte da Igreja, em abordar o tema das relações entre o mundo do Trabalho, então o dos operários, e o do Capital, em busca de uma posição conciliatória de interesses e perspectivas, inspirada no Cristianismo, apesar da sua fraca aceitação social, pelos extremados pontos de vista da época.

Vinha nesse tempo em ascensão o messianismo filosófico-político do Marxismo e a sua interpretação dialéctica da História, vista como uma contínua luta de classes, inconciliável, por pretendida natureza, e que haveria de conduzir, segundo os seus arautos, Marx, em primeiro lugar, à vitória definitiva do Proletariado, uma vez esta classe capacitada do seu papel, por via da sua tomada de consciência, ajudada nesse objectivo por uma vanguarda política – o Partido Comunista – em que participariam os intelectuais e outros grupos sociais seus aliados, todos orientados pelo Materialismo Dialéctico, doutrina filosófica desenvolvida por Karl Marx, na segunda metade do século XIX.

O papel do Partido seria depois extensamente estudado por Lenine, que aplicaria na Revolução russa de 1917 o essencial da doutrina, com algumas inovações e sobretudo com muita dureza, que ainda mais se agravou com a sua morte prematura.

Com efeito, após a morte de Lenine e a sequente subida à Direcção do Partido e do Estado, de José Estaline, figura típica de déspota oriental, à maneira czarista, brutal e impiedoso, toda a suposta pureza doutrinária inicial se perderia, segundo o seu companheiro Trotsky, depois posto em fuga e persistentemente perseguido, até ser morto no México, em 1940, por um agente de Estaline.

Neste ambiente de final do século XIX, princípio do século XX, o espírito conciliatório da Igreja não encontraria terreno fértil. A Igreja trazia consigo um longo historial de cumplicidade com interesses espúrios, em alianças com os poderosos, em total contravenção com o preconizado no Evangelho, o que, para os mais fracos, lhe retirava credibilidade, para ser aceite como entidade intermediária, conciliatória, para congraçar as partes em luta ou sequer para arbitrar os conflitos existentes.

Causou-me, logo em 1991, forte impressão a leitura da Centesimus Annus, por abordar um tema então muito discutido : a falência das ideologias. O Muro de Berlim já havia caído, em Novembro de 1989 e a União Soviética soltava os seus últimos suspiros.

Haveria esta também de sucumbir, em Agosto de 1991, no fracassado golpe anti-Gorbachev, desencadeado por militares e altos dirigentes do Partido Comunista, numa tentativa desesperada de cortar com as reformas políticas e económicas de Gorbachev.

O débil apoio que o golpe suscitou, mesmo no sector das Forças Armadas, levaria à firme reacção de Ieltsin, que, tendo saído triunfante, seria imediatamente guindado à cúpula do Poder, dando início a uma série de profundas reformas políticas que haveriam de pôr fim à União Soviética, restaurando as antigas autonomias políticas das ex-repúblicas soviéticas, provocando uma verdadeira revolução de sentido inverso à de Outubro de 1917.

Nesta encíclica – Centesimus Annus – o Papa tratava com ousadia e argúcia as contradições e os defeitos da doutrina socialista, tal como a conhecera na prática comunista dos países de leste, ao mesmo tempo que denunciava as limitações e as ilusões do sistema triunfante : o Capitalismo, ou Sistema de Economia de Mercado, sem deixar de reconhecer a superior capacidade deste, no aspecto económico e no do desenvolvimento técnico-científico dele resultante.

Na minha modesta opinião, evidentemente, a encíclica Centesimus Annus ( 1991), juntamente com a Laborem Exercens (1979) e a Solicitudo Rei Socialis (1987) fazem parte de um conjunto de encíclicas sociais que João Paulo II escreveu, que serão das mais importantes da sua vasta produção intelectual. São elas as de maior cunho interventivo, no plano social e, simultaneamente, as de menor cariz teológico.

Em qualquer delas, é bem notório o vigor intelectual e até o desassombro do autor, na maneira de abordar certos temas polémicos da actualidade : como o direito ao trabalho, o respeito da dignidade do Homem, como ser humano e como trabalhador, o dever de solidariedade, o respeito da Natureza e das suas formas de vida, a necessidade de estabelecer relações justas entre os Estados, a ética na sociedade actual, etc., etc.

Tomaram muitos dos actuais dirigentes políticos, nacionais e internacionais, mesmo os considerados mais empenhados em assuntos do foro social, ser capazes de se aproximarem sequer da clareza e da firmeza das opiniões de João Paulo II nas matérias em causa.

Mais uma razão para se contestar o uso da antiga dicotomia política Esquerda-Direita, oriunda do tempo da Revolução Francesa, hoje manifestamente inadequada para classificar ou identificar intervenientes políticos, sendo mesmo, em muitos casos, completamente errónea.

Apesar do valor e do interesse geral das encíclicas de João Paulo II poucos as têm mencionado no momento presente. Aliás, mesmo antes, foram raras as referências a esse aspecto do seu pontificado, excepto nas publicações de índole religiosa, de reduzida divulgação e influência.

Impressiona-me agora, como a qualquer um deve impressionar, ver tanta gente em Roma, supostamente para homenagear a memória de João Paulo II e exprimir a sua dor pelo desaparecimento desta grande figura da Igreja e do Mundo.

Reconheço que este Papa, por ter tido um longo pontificado, pelas circunstâncias históricas em que este se desenvolveu, pelas viagens que efectuou, pela sua proveniência, pelo conhecimento que trazia da dureza da vida, visto ter trabalhado com as mãos, como Mineiro, por ter vivido no «socialimo real», por tê-lo conhecido por dentro, e não como muitos airados intelectuais, que lhe enalteciam as virtudes a partir das esplanadas dos Boulevards de Paris, pelo seu próprio carisma, por muitos outros factores relevantes, acabou por entrar na vida de muita gente em todo o mundo.

Numa das suas visitas a Portugal, a segunda, em Maio de 1991, também eu estive no Estádio do Restelo, com a minha filha mais velha, então com 8 anos, a saudá-lo e a escutar a sua homilia.

Sei quanto me custou, quando ele ao enumerar os lugares em que Portugal havia desempenhado a sua acção evangelizadora, associou ao nome de Timor o de Indonésia, permitindo a dúbia interpretação quanto ao reconhecimento da integração do território, na altura tema apaixonadamente seguido por quase todos os portugueses, que lutavam pela condenação da anexação violenta e ilegítima de Timor, por parte da Indonésia, e pelo direito daquela nossa antiga colónia ao exercício da auto-determinação e independência.

Sei também quanto me desagradou quando ele, ao desembarcar do avião, em Dili, vindo da Indonésia, optou por beijar o crucifixo e não o solo, o que seria tido como um recuo, no apoio da Igreja ao desejo de independência de Timor, então sujeito à ocupação brutal da Indonésia, perpetrada em Dezembro de 1975, num período de acentuada desorganização do Estado português, então a braços, em Lisboa, com uma Revolução que havia descambado dos seus primitivos objectivos e quase fez o País cair na esfera de influência da ex-União Soviética.

Nestes episódios, João Paulo II mostrou bem como ele e a Igreja são entidades deste mundo, sujeitos ao erro e à virtude, consoante o momento e as causas em que inserem a sua acção.

Felizmente que, para Timor, tudo terminaria bem, com o acesso à independência em 2002, ainda que tivesse de passar pela atribulada consulta eleitoral, sob fiscalização da ONU, em 1999, em que mais uma vez a brutalidade dos ocupantes indonésios e das suas assalariadas milícias fantoches semeariam o terror entre a população, apesar da forte presença da ONU e da imprensa internacional.

Mercê da persistente acção conjugada da guerrilha interna da Fretilin, da Igreja local, em particular do Bispo de Dili, D. Ximenes Belo, e da diplomacia portuguesa, aqui, por uma vez, sustentando uma causa prolongada no tempo, de forma coerente, sistemática, apesar das muitas alterações na sua política doméstica, foi possível vencer um inimigo forte.

Inimigo, diga-se, que contou, durante muitos anos, com o apoio directo e a conivência dos poderosos do Mundo, como os EUA, a França, a Inglaterra e a Holanda e até com a cumplicidade de alguns que de tal não suporíamos capazes, como a tão decantada democrática Austrália, que não hesitou em conluiar-se com a Indonésia, para tomar parte no saque da exploração do petróleo do mar de Timor.

Todos estes factos foram vividos em Portugal com grande interesse e até com algum desespero, perante a incerteza do rumo dos acontecimentos agravada nas lancinantes cenas de destruição que as televisões nos enviavam.

Nessas horas angustiadas, o povo português vibrou em uníssono, numa onda de solidariedade como nunca me lembro de ter visto, eu, que não estive em Portugal, no primeiro 1º de Maio da liberdade reconquistada, em 1974, por me achar então nas matas de Cabo Delgado, em Moçambique, numa missão ingrata e inglória, já nessa altura votada ao fracasso.

Nestes episódios, o Vaticano foi menos empenhado que a Igreja local e disso guardo registo, mas nem por isso responsabilizo João Paulo II, porque o mundo da política internacional é assaz tortuoso e sujeito a muitos factores condicionantes das posições sustentadas.

Todavia, no presente, perante as maciças manifestações de pesar, em Roma, que vi pela televisão, como cidadão já bastante calejado pelos desconcertos da modernidade, não posso deixar de duvidar de tanto fervor, numa época tão dada a frequentes e exuberantes manifestações de júbilo ou de pesar, que, verificamos depois, pouca ou nenhuma repercussão produzem na vida dos que nelas participam.

O fenómeno mediático que delas se apropria contribui certamente para a sua extraordinária dimensão, mas igualmente lhes retira muita da genuinidade da sua expressão.

Ninguém pode, naturalmente, impedir o Povo de acorrer a estes eventos, nem pretender moderar-lhe as suas emoções. No entanto, a forma como as multidões expressam as suas emoções assume algumas características deveras semelhantes, quer se trate de situações de pesar, quer de júbilo.

Neste aspecto, há aqui um fenómeno de banalização de sentimentos claramente evidenciado. Basta que nos lembremos das manifestações de dor, por ocasião da morte trágica da Princesa Diana.

Analogamente se montou um verdadeiro festival mediático à volta do acontecimento, com multidões que cresciam continuamente, à medida que se intensificava a cobertura televisiva, com reportagens extensas transmitidas em directo para todo o mundo.

No caso de João Paulo II, contudo, ouso dizê-lo, toda a atenção dispensada à sua agonia e morte, praticamente em directo para todo o mundo, corresponde ao mérito intelectual e moral da pessoa desaparecida.

O seu arrastado sofrimento perante os nossos olhos, nos anos finais do seu Pontificado, longe de ter sido exibição individual ou imposição de forças ocultas e tenebrosas, como alguns críticos sempre aventavam, julgo que representou uma valorização do próprio sofrimento humano, como parte da nossa natureza, levando-nos a compreender a permanente dignidade da pessoa, mesmo no limite do seu estertor final.

Isto tem, a meu ver, um sentido eminentemente Cristão e universal : o ser humano nunca perde a sua dignidade ao longo da sua conturbada existência, qualquer que seja o seu estado de saúde físico ou mental.

É bom que retenhamos esta verdade profunda, num tempo que tanto enaltece a beleza, física, sobretudo, a juventude e a aparência, independentemente do seu conteúdo e dos objectivos que com tais atributos se perseguem.

Estas as palavras que gostaria singelamente de dedicar à memória de João Paulo II, o Papa que veio do frio, para aquecer os nossos corações, para nos despertar, para nos exortar a todos, crentes e não crentes, a lutar pelas causas da Humanidade, que vive hoje momentos de desânimo e de ilusão, mergulhada na busca de falsos ideais, embotada no individualismo e no consumismo mais embrutecedores.

Que o seu exemplo se guarde na nossa memória para que frutifique.

Honoratur arbor ob umbram / Honra-se a árvore pela sua sombra.

Ad astra doloribus itur / Pelo sofrimento se chega a grande altura.

AV_Lisboa, 14 de Abril de 2005

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